terça-feira, 11 de outubro de 2011

A CONFRARIA


Para toda a Escola, “seo” Chico. Chico Poeira, Chico Quebra Galho.
Única certeza: trabalhou na biblioteca durante quatro décadas sem registrar ausências. Serviu a milhares de criaturas. Difícil nomear quem não lhe ficou devendo favores, sorrisos, gentilezas, uma cumplicidade qualquer. Até livros deixou escapar das prateleiras anotando, em diário pessoal, data da retirada do volume entregue à sua guarda e proteção. Antes do encerramento do semestre saía atrás do referido, implorando devolução. Se nunca traiu, jamais o traíram. Era de gosto registrar a grandeza duma convivência fraterna entre bedel e favorecidos, a maioria necessitada de ajuda por falta de condições para adquirir obras necessárias à formação universitária.
            Lembro-me da silhueta do sujeito gorducho, pouco ligado aos costumes de banho diário, porém atento a deveres de amizade, nunca desmerecidos.
Comovente a cerimônia de sua aposentadoria compulsória. O cidadão de menor gabarito a abraçar o funcionário Francisco Arcanjo Pimenta, ninguém menos que o Presidente do Tribunal de Justiça do Estado cercado de desembargadores, advogados, promotores, juízes, serventuários, corte de eminentes jurisconsultos. Registre-se a presença de ministros desembarcados de Brasília e outros bichos domésticos. Dispenso mencionar a canalha aboletada, por antecipação, no espaço reservado à festança etílica carnavalesca que atravessou noite entre cantares de causar inveja a incautos nas artes da Ciência do Direito quando enaltecidas em ocasiões de reencontros memoráveis.
 O jubilado fingiu abrir sucessão para imberbe aprendiz.                             
 Passado o período de conveniente resguardo, fácil encontrar o velho Chico nos vestíbulos de leitura, envolto em sua bibliomania. O recém contratado funcionário, apesar de boa reputação, se tornara singelo auxiliar de quem lhe impedia exercer qualquer função de utilidade prática. Na verdade, tirante a condescendência de deixá-lo subir e descer escadas para apanhar volumes requisitados pela galera, sua presença no recinto era dispensável. Chico Poeira, como a maioria dos homens, teimou em ignorar a hora conveniente de parar...
Mal percebeu a inexorável fase da decadência física, dos primeiros achaques de neurastenia, da implicância com tudo quando observava em volta.
 O sistema de computadores pegou-o desprevenido. A forma de lidar com todo aquele maquinário se encontrava acima deu sua capacidade para entender a modernidade adotada, de plano, por alunos e professores. Papéis e cadernos, tanto como ele próprio, transformavam-se em peças de museu. Até as Remington da secretaria foram para o lixão, aonde se acumulavam ratos, baratas, quinquilharias. Por falta de andanças e exercícios foi perdendo a flexibilidade de movimentos. Ato contínuo, lastimável melancolia lhe ofendeu o espírito. Nessa circunstância, os homens ignoram quanto deixaram de representar no contexto social. Vivem na ilusão de ainda representar figura importante na coletividade. Situação triste, não insólita, seguramente repetitiva, real. As glórias da terra são transitórias. Não assentam domicílio.
 Chico acompanhou a regra. Desde a solenidade da aposentadoria, que restou? Um idoso engolido pela tecnologia e pelo desprezo de geração disposta a ignorá-lo por completo. Transfigurara-se num espantalho, cujo labor resumia-se em afugentar moscas.
Sorte o convite para trabalhar num Sebo instalado nas imediações do instituto de ensino, receptáculo de sonhos e amores. Ali, entre alfarrábios jurídicos e produções literárias de mal recordados autores, imaginou-se ressurreto. A idade, porém, não lhe abriu exceção.
Nascer, aproveitar a presença neste planeta, morrer... É o drama da humanidade, problema nunca solucionado, apesar de muito pensarmos a respeito.
Como nos definir, qual o sentido de nossa origem, para onde caminharemos por imposição da Lei Cósmica, imutável? É fogo!
 Melhor seguir instruções do sambista - deixar a vida nos levar. Afinal, sequer conseguimos conduzir a canoa em que embarcamos. Torna-se de mínimo interesse saber se o Universo surgiu através de estouro programado ou apenas recomeçou o ciclo expande, contrai. Aliás, dedução a ser considerada.
Quero é cuidar das coisas que me dizem respeito. Ao monturo  fórmulas complexas na explicação, difíceis de absorver.    
Incrível a capacidade de a velhice atrair velhices.
Desse modo, nos fundos da lojinha de compra, venda ou permuta de Obras preciosas, constituiu-se a Confraria, que reunia em pachorrentos crepúsculos de prosa e digressões acadêmicas, o quanto sobrara da época em que livros ofereciam satisfação a seus aficionados. Hoje, dizem, estão prestes a desaparecer entre as brumas da saudade.
 Nenhuma crítica à juventude escrava da cibernética. Suficientes dois toques nas teclas de um notebook, acrescidos de leve contato no botão “imprimir”, o trabalho pedido pode ser entregue aos mestres. Um catedrático confessou-me haver recebido 17 monografias absolutamente iguais no final do último ano letivo.
Ah, sim... Procedeu-se a escolha do nome Irmandade através de sufrágio secreto. Única dúvida. Decifrar se havia maior número de eleitores ou de bengalas encostadas na parede ao lado das urnas receptoras de votos. Sobretudo porque, quem atendeu ao convite para comparecer á sede da Confraria naquela tarde, recebeu título de Fundador, com direito a participar do pleito. Assim organizado, o recanto intelectual colocou-se à prova a possibilidade de subsistir ao tempo. Infelizmente...
Numa manhã a notícia: Chico bateu as botas. Atropelamento. O proprietário do Sebo, lusitano até simpático, transferiu o ponto, levou consigo os melhores livros. Frequentadores assíduos abandonaram o Centro da cidade à medida que este se degradou, deixando recordações fugidias. A Confraria dissolveu-se. Também feneceu. Degeneração múltipla dos órgãos. Há lua e meia percorri as adjacências da outrora ilustre casa de raridades. Dirigi-me ao local onde funcionou. No lugar, nauseabunda lanchonete. Dominava a redondeza o odor de óleo putrefato. Dentro de retângulo envidraçado um japonês (ou seria coreano?) fritava pastéis. Não parei de caminhar. Apressei a marcha. Matutei com meus botões. Nada se cria... Tudo se transforma.
Nós também!

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

A VELHICE É TRISTE


Faz bem à vida reencontrar amigos dos tempos em que se desleixava deveres, constituir família era projeto futuro, estudar uma obrigação agradável, descumprir horário fator corriqueiro, promessas esquecidas não causavam arrependimento e cada qual levava o dia a dia da melhor maneira possível. Sobretudo, trabalhando. Batalhar desde cedo nunca matou operário.
 Feliz, portanto, quem marcou data para nosso grupo de anciãos fazer-se presente na “Toca da Onça”, boteco da zona portuária, vizinho de cabarés, dancings e restaurantes cuja freguesia era composta de marujos, notívagos e “mariposas” de boa estrutura física e espiritual.
Compareceu à “Toca” quem pode, ou seja, os sobreviventes de nostálgico período, onde jornalistas sabiam ler, escrever, produzir, sem precisão de faculdade.
 Tirante hipertensão, diabete, artrose, fígados inchados, problemas de próstata, quinze safenas, uma confissão explícita de impotência, o remanescente nos conformes.
A alegria contagiante, os trocadilhos, a revolta com a atuação política da maioria no Congresso, a condenação da ignorância cultural disseminada entre a mocidade graças ao semi-analfabetismo de parte do professorado, a intercessão da mídia no cotidiano das pessoas, de tudo se falou ou aconteceu um pouco.
Parecia um bando de dinossauros a dar importância ao quase nada, ao nada poder executar com a desenvoltura de outrora.
Nego a existir geração tão porreta e engenhosa. Não havia computador para substituir o cérebro de ninguém. As opções se debatiam na dicotomia – colocar a cabeça para funcionar ou tudo se embrulhar no furor da concorrência. Infelizmente, nossas testemunhas são peças de museu.
O processo criativo da Natureza terminou no paraíso, o resto é transformação. Será?
Que realizam - senão criar – os escritores, publicitários, compositores, poetas, arquitetos, designers, inventores toda espécie e grandeza?   
A propósito, maçã é fruta enigmática.
Isaac, o Newton, descobriu a força da gravidade em razão da queda de uma delas no alto do seu cocuruto. Haroldo Lobo consagrou na marchinha carnavalesca o requinte gastronômico de Adão – “maçã igual àquela, o papai também comia.”
A gente caiçara, ao abrir os olhos, enxerga o mar, as moças morenas, a valentia dos pescadores, homens sem medo de enfrentar o oceano.
Na meninice costumava ouvir – garoto, nadando sempre em linha reta, se alcança a África. Provava-se coragem dando braçadas até perder fôlego. Difícil retornar à praia. Tentar a façanha, dever de traquinagem juvenil.
Por carência de oportunidade não dei um giro pela orla. Lamento.
Na prosa dos vetustos, um camaradinha exaltou aventuras quixotescas, multiplicadas ao sabor da cortesia imposta pela civilidade da assistência. Houve quem descrevesse reportagem realizada in-loco por ocasião da descida do homem na superfície da lua. Um terceiro forneceu detalhes de entrevista com ETs aparecidos em rodovia federal em reparo (sic). Outro abasteceu a platéia narrando pormenores de conversa íntima mantida com determinado Papa durante viagem à América do Sul. Divulgaram conselhos desprezados por Pelé e o trabalho de certo radialista em ensinar o beijo técnico trocado entre o Randal Juliano e a Vida Alves no início das transmissões televisivas.
Enfim, proezas de causar inveja a mitólogos de todas as raças.
Espumantes tulipas de chope adornavam o ambiente. Uma saudade imensa revigorava orgulhos pretéritos Mentiras e verdades, descritas sem pavor de recriminações, abrilhantavam o espaço reservado a tradicionais freqüentadores da tasca secular.
 Na rua, despencava um toró - águas de março, fechando o verão...
Assim revi amigos, companheiros perdidos por décadas, turma legal que se prepara, sem cuidado, para seguir em direção ao desconhecido.
Tive pena de alguns. Compaixão, piedade, como definir? Não se prepararam para a velhice. Gastaram dinheiro e talento sem pensar no futuro.
No carro, conferi idéias com o Cuna.
- Na próxima estarei ausente. Voltar a terra mãe, que vantagem trouxe?
- Praiano, acontece que estivemos em reduto fossilizado. Nenhum deles progrediu ou se adaptou aos avanços tecnológicos. Continuam sendo, apenas, gente boa. A velhice é triste, quando nos acomodamos. Este, o drama da maioria dos seres humanos.
As mulheres, em geral, reagem. Disfarçam a perda do interesse pelos assuntos de cachola, assistindo a novelas. As pelancas elas corrigem, injetando botox.
 - O sol começa a expulsar as estrelas. Vamos no balançar da calmaria. O último apressado engarrafou as nuvens. Negócio é subir a serra devagar. Deixa o Galo dirigir. É profissional.  
- Queixoso, faltou-lhe picardia. Reparou na jambete que nos devorava com os olhos?
A fossa não se origina no fato de não teres o que vestir.  Mas, naquele deixar de notar que, ao lado, está uma descolada disposta a te despir. Morou?  
- Pompas, fêmea no pedaço e não cutucou. Colocaríamos a modernidade a serviço da satisfação. Comprava-se uma caixa de Viagra, (dane-se o coração) e pau na crise. Mulher solta sempre se ampara em “comadre” cúmplice prá qualquer babado. Dava pros dois. É de praxe.
- As boas sugestões aparecem antes ou depois da hora justa. Agora, só no binóculo. Tua decisão é de escapar da reunião seguinte, Entonces...
- Cuna, entendeu errado. Acha possível eu afirmar uma asneira dessa? O lance será abandonar a lengalenga daqueles cretinos e ficar alerta. Trocou sorrisos, muda-se de mesa. A mais tesuda é minha. Que pode suceder, salvo alegria, alegria?