sábado, 10 de setembro de 2011

FLORES NA MANHÃ QUE NASCE


Vestido de chita cor-de-rosa, sandálias tipo havaiana, cabelos loiros, em desalinho, olhos de mel, apenas completadas doze primaveras, Carina, a florista, bate-me à porta, trazendo o vaso de crisântemos cultivado pela própria mãe. Inocente lorota na qual finjo acreditar entre sorrisos e meiguices.
            A menina é um doce de criatura. Visita-me nas terças e sábados, pouco importa esteja o sol a brilhar ou o firmamento se apresente carregado de nuvens ameaçadoras.  
Cumpre a obrigação de entregar encomendas; impossível desiludir a freguesia, conquistada à custa de persistência, graça e simpatia.
No bairro, toda gente a conhece e lhe dedica um bem querer fraterno, filial.
Carina reúne educação e simplicidade.  Inteligência viva, sorriso fácil, impossível distinguir sua melhor qualidade. Noutro dia mesmo, um vizinho confessava ter inveja de nossa relação. Sempre desejou conversar com a pequena vendedora, no entender de muitos a própria natureza em festa. Mas, dizia-me, eu o privara de concretizar tal aspiração.
 Nunca tive anseios de monopolizar tão bela amizade. Entretanto, é certo, ela reanima meu coração por vezes cansado dos desmandos da vida moderna.      
            Convido-a entrar. Sentamos lado a lado na mesa do desjejum. Antes, pede-me licença para lavar as mãos, circunstância jamais esquecida; ternura de civilidade. A pobreza não a desobriga de demonstrar o quanto aprendeu em casa.
- A gente ajuda na limpeza, faz a lição da escola, sobra tempo para ajudar as caçulinhas... Importante é rezar, pedindo luz. A família faz orações na hora de dormir, sabe doutor?!  
 Ofereço-lhe pão, queijo, manteiga, a xícara de café com leite, bolo de chocolate, ainda fumegante, suco de laranja, provavelmente sua mais consistente refeição da semana.
Em determinada ocasião cheguei a imaginar se estes momentos não seriam meros subterfúgios capazes de impedir reflexões a propósito de as obrigações de minha consciência perante a sociedade desguarnecida.
E se Carina for apenas um álibi mal costurado diante de Deus para amenizar meus pecados?
Pai, não tem. Contou-me haver abandonado mulher e filhas, envolvido com tramóias, malandragens e polícia. Sumiu nas brumas da degradação humana.
A mãe, feirante, luta por manter a prole entre privações e sofrimentos, mantendo padrão decente de trabalho e bom exemplo, esforçando-se para dignificar cada tostão ganho honradamente, aplicado sem desperdício. Assim vão vivendo de maneira humilde, modesta, briosa.
Esmolas? Nem pensar!
            A florista-doçura teima em batalhar insistentemente. Nada lhe assusta ou desanima. Salvo quando obrigada a permanecer na barraca, esperando compradores. A calmaria de um balcão não integra sua personalidade buliçosa.
Elétrica, vai construindo a vida; lutando, competindo, pelejando aqui, ali, acolá.
- Desculpem. Vendo flores e tenho um preço. Não paguem além do combinado. Detesto abusar nem receber o que não seja justo.
Na oportunidade em que ouvi tal frase, pronunciada com tanta convicção e altivez, desabei!
Positivamente estava a sonhar. Idealizei tratar-se de suspiros ou fantasia inquietante.
 muito desaprendemos a receber lições semelhantes.
 Entretanto, as palavras quantificavam a probidade presente no cérebro de uma infante...
 A partir de então, nos tornamos amigos... Amigos inseparáveis.
 A presença dessa criaturinha em casa tem o condão de fazer-me raciocinar a propósito do real valor da honradez em nossa existência e descobrir onde se localiza a morada da felicidade.
            O leitor poderia informar-me ou também sente dificuldade para desvendar este mistério?
Estaria o cofre da fortuna nos palácios imperiais, nas viagens paradisíacas entre nobres e bajuladores ou no comportamento descontraído e alegre duma pirralha encantadora? Na leitura de grandes livros ou na erudição científica dos doutores?
Não seria justo procurar na candura dos pequeninos, onde a maldade ainda não conseguiu penetrar?
            Perdi a conta de quanto procurei a Deus entre as estrelas que iluminam o Universo infindo. Incontáveis, também, as horas em que O encontrei dormindo junto a mim, repousando debaixo de meu travesseiro. Intrigante...
            Minha amiguinha termina a refeição frugal. Encabula-se ao agradecer.
            Tem os lábios lambuzados, o rosto tranqüilo, pressa para continuar o trabalho.
            Feliz da vida, pergunta pelo restante da família. Sabe o nome de cada um, a todos deixa um abraço.    Entrego-lhe o dinheiro devido pelo vaso de crisântemos.     Qual destino lhe reserva as necessidades duma gente desvalida, plena de virtudes e cuja presença ao nosso lado milhões ignoram neste mundaréu de cínicos ladravazes? Horroriza-me indagar-lhe.
Talvez seja para o aluguel mensal do cortiço. Por que não para adquirir um remédio, pagar dívidas de comida, comprar sabão de tanque, quem advinha?  
            Beija-me. Despede-se. Vai tratar da vida.
Em breve Carina será mocinha. A crueldade de a cidade grande lhe agredirá de todas as formas possíveis. Perceberá os desatinos coletivos e querendo manter convicções, terá de enfrentá-los com coragem e valentia.
            O escriba, um simples tabaréu sem méritos, não consegue descobrir as razões da presença de tanta miséria e desigualdade nesta terra onde as flores enfeitam os campos e o bicho-gente degrada sua própria permanência no planeta

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