A menina é um doce de criatura . Visita-me nas terças e sábados , pouco importa esteja o sol a brilhar ou o firmamento se apresente carregado de nuvens ameaçadoras.
Cumpre a obrigação de entregar encomendas ; impossível desiludir a freguesia , conquistada à custa de persistência , graça e simpatia .
No bairro , toda gente a conhece e lhe dedica um bem querer fraterno , filial .
Carina reúne educação e simplicidade . Inteligência viva , sorriso fácil , impossível distinguir sua melhor qualidade. Noutro dia mesmo, um vizinho confessava ter inveja de nossa relação . Sempre desejou conversar com a pequena vendedora, no entender de muitos a própria natureza em festa . Mas , dizia-me, eu o privara de concretizar tal aspiração .
Convido-a entrar . Sentamos lado a lado na mesa do desjejum . Antes , pede-me licença para lavar as mãos , circunstância jamais esquecida; ternura de civilidade . A pobreza não a desobriga de demonstrar o quanto aprendeu em casa .
- A gente ajuda na limpeza , faz a lição da escola , sobra tempo para ajudar as caçulinhas... Importante é rezar , pedindo luz . A família faz orações na hora de dormir , sabe doutor ?!
Ofereço-lhe pão , queijo , manteiga , a xícara de café com leite , bolo de chocolate, ainda fumegante , suco de laranja , provavelmente sua mais consistente refeição da semana .
E se Carina for apenas um álibi mal costurado diante de Deus para amenizar meus pecados ?
A mãe , feirante , luta por manter a prole entre privações e sofrimentos, mantendo padrão decente de trabalho e bom exemplo , esforçando-se para dignificar cada tostão ganho honradamente, aplicado sem desperdício . Assim vão vivendo de maneira humilde , modesta, briosa.
A florista-doçura teima em batalhar insistentemente . Nada lhe assusta ou desanima. Salvo quando obrigada a permanecer na barraca , esperando compradores . A calmaria de um balcão não integra sua personalidade buliçosa .
- Desculpem. Vendo flores e tenho um preço . Não paguem além do combinado. Detesto abusar nem receber o que não seja justo .
Na oportunidade em que ouvi tal frase , pronunciada com tanta convicção e altivez , desabei!
Há muito desaprendemos a receber lições semelhantes .
A partir de então , nos tornamos amigos... Amigos inseparáveis .
A presença dessa criaturinha lá em casa tem o condão de fazer-me raciocinar a propósito do real valor da honradez em nossa existência e descobrir onde se localiza a morada da felicidade .
O leitor poderia informar-me ou também sente dificuldade para desvendar este mistério ?
Estaria o cofre da fortuna nos palácios imperiais, nas viagens paradisíacas entre nobres e bajuladores ou no comportamento descontraído e alegre duma pirralha encantadora? Na leitura de grandes livros ou na erudição científica dos doutores ?
Perdi a conta de quanto já procurei a Deus entre as estrelas que iluminam o Universo infindo . Incontáveis , também , as horas em que O encontrei dormindo junto a mim , repousando debaixo de meu travesseiro . Intrigante ...
Tem os lábios lambuzados, o rosto tranqüilo , pressa para continuar o trabalho .
Feliz da vida, pergunta pelo restante da família . Sabe o nome de cada um , a todos deixa um abraço . Entrego-lhe o dinheiro devido pelo vaso de crisântemos . Qual destino lhe reserva as necessidades duma gente desvalida , plena de virtudes e cuja presença ao nosso lado milhões ignoram neste mundaréu de cínicos ladravazes? Horroriza-me indagar-lhe.
Beija-me. Despede-se. Vai tratar da vida .
O escriba , um simples tabaréu sem méritos , não consegue descobrir as razões da presença de tanta miséria e desigualdade nesta terra onde as flores enfeitam os campos e o bicho-gente degrada sua própria permanência no planeta .
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